Minha ira, minha alegria

Na escorregadia pia onde lavo minha ira
Vivem restos imortais que, grudados às gorduras do dia-a-dia,
Sorriem para as tias com ar de desleixo e ousadia.

Mas os pontos microscópicos que emanam dos meus poros
Gritam cores saltitantes que brilham tanto quanto antes.
E mesmo que deslizem pelas mãos como sabão
Na água viva da minha pia são possantes. Como não?

Aceito o pão. Mas nego o jargão nosso de cada dia.
Pois, – quem diria? -minha ira, lavada pela água que me guia,
Haveria nascido, quiçá, da tão sublime alegria.
O mesmo jubilo que poderia fazer findar...
essa sórdida orgia, filologia.

Mas “seria” se real fosse. E realidade não há se não
Pela ingênua fantasia – a mesma que não abro mão.
Pois sairiam minha ira e alegria a cantar qualquer refrão
Cirandando, como crianças, pelo pátio até o porão.

E o resultado, já esperado, de toda má simetria
Bem poderia ser comunhão de métrica e fogosa rima
Posso, sim, imaginar quão magnífico e bom seria
Se em paz vivessem minha ira e minha alegria:

Borbulhariam eternamente como uma taça de Chandon
Leves bolhas de ar infladas pelo sopro, inspiração.
Explodiriam no negro céu como fogos, reveillon!
Serenatas consonantais em alto e estridente som.

Lada-a-lado, as duas, marchando rumo à partida
Rabiscariam soberbas letras com nuanças de biografia.
Em cujo fim, certamente, diria a ira à alegria:
“Sou tua mãe, sou tua filha. 
Nunca estivera realmente sozinha”.