Tédio e razão instrumental

Os Deuses estavam entediados; por isso criaram o homem. Adão ficou entediado por estar só; por isso Eva foi criada. Desde então, o tédio penetrou no mundo e cresceu em proporção exata ao crescimento da população”. (Kierkegaard)

Falar sobre tédio e razão instrumental é falar sobre toda a sociedade, e ter que ir, mesmo que brevemente, a atual ilusão de democratização do acesso ao ensino superior. Isso porque a razão instumental (para tirar qualquer dúvida, põe no google: horkheimer razão instrumental) está impregnada até nas paredes das universidades. No caso da psicologia, um ambiente em que cada vez mais crescem em importância as tais psicologias organizacionais, as faculdades ficam parindo psicólogos reprodutores do instrumentalismo, cada vez mais adestrados na lógica especializante. O psicólogo especialista, fruto e reprodutor da mercantilização do “conhecimento” (que ele não identifica como processo, inacabado, mas como dado), se baseia na “eficiência” e não compreende os indivíduos como históricos: trata-se de um profissional normativo, imediatista e tecnicista.

O terapeuta especialista e normativo – que não é parte de uma grupo minoritário, muitíssimo pelo contrário -, por ser dominado pela razão instrumental, não compreende que é este mundo hipermoderno, líquido, que se sustenta – se é que se sustenta – em bases arenosas. Ele quer assujeitar (procure no google: foucault assujeitamento) o indivíduo dentro de um modelo de normalidade, quando sentir-se mal é o que há de mais normal. Não só porque bem e mal são constructus, e porque, como viu Kierkegaard, angústia e desespero são sinaais de que se é humano, mas porque aquilo que se definiu como mal-estar é o combustível para a civilização, como bem notou Dr. Freud, e hoje mais. Hoje mais. Hoje, muito mais.

Não haveria esta “terceira fase do capitalismo” sem o tédio. É ele que permite o mercado da moda existir, bem como outros tantos mercados, se não todos. Desde o carro novo (para algumas sociedades e pequena fatia da nossa) até o pó. O pó sim, como o tédio, nos une. O terapeuta especialista, em vez argumentar e fazer ver que o mal-estar criado pelo tédio é fruto de uma lógica, de uma razão instrumental que lucra (não só diretamente) com a sua angústia, procura estabelecer mecanismos para que o indivíduo torne-se mais individualista, alimentando o efêmero e o fugidio como sustentáculos de um mercado em que a velocidade de consumo e o descarte incessante dos bens configuram o modo de vida e a própria vida. Trata-se da manutenção da eficiência, uma vez que considera a si mesmo e seu trabalho como mercadoria.

O suplemento Revista de domingo passado do oglobo abordou de modo didático mas interessante a questão do tempo nos dias atuais. E a matéria conta que os grandes bancos mundiais estão planejando ações conjuntas para que se mude algumas regras outrora intocáveis da relação tempo x trabalho. Parece que o Clube de Paris percebeu que a caça está para virar contra o caçador e quer, como sempre, se adiantar aos efeitos destrutivos. A questão é: chegamos a ponto tal de aceleração e tecnificação da vida que estamos aa beira do colapso. Ora, se os bancos estão preocupados é porque o prognóstico já mostra séria perda de lucro. Você pode comemorar este dado relembrando Marx, mas eu o farei com Freud: uma civilização que deixa insatisfeito um tão grande número dos seus participantes não tem perspectiva de ser duradoura. E posso ir além, e lembrar do (citado no post anterior) Mundo Novo de Huxley. Decerto, não nos falta SOMA. Pelo contrário, temos muitos: umSOMA para cada grupo de indivíduos. Os terapeutas são muitos bons de vender (ou melhor, recomendar para que o psiquiatra prescreva) um SOMA conhecido como tarja preta.

O homem contemporâneo se sente só, sente que está perdendo tempo, perdendo oportunidades, perdendo a vida. E ele precisa ter! Compensa seu desespero com ter. E precisa de novidade – a todo instante. Não bastasse o celular, agora o twitter. Não bastasse ser visto e ser encontrado em qualquer hora e lugar, ele faz questão disso: é voluntário, e se não o faz… tédio. O vazio. E quando nele, no tédio, é incapaz de perceber que o bem-estar que ele compra em forma de mercadoria é só ilusão que vende quem quer vê-lo, justamente, entediado. Até que o Mundo Novo chegue, é este o carrossel da brincadeira de viver em liquidez. Afinal, mais vale dar fim que consertar.