“A nova etapa da consciência musical das massas se define pela negação e rejeição do prazer no próprio prazer. Assemelha-se tal fenômeno aos comportamentos que as pessoas soem manter em face do esporte ou da propaganda. A expressão “prazer artístico” ou “gosto artístico” assumiram um significado curioso e cômico. (…) Ainda que se deliciasse com os belos trechos de um quarteto de Schubert ou com um provocantemente sadio “concerto grosso” de Haendel seria catalogado como um defensor suspeito da cultura, bem abaixo dos colecionadores de borboletas”. (ADORNO)
A crença atual – pseudo-pós-moderna – é a de que o mundo contemporâneo se caracteriza por um espaço cultural de “múltiplas escolhas”, onde os “projetos individuais” se evidenciam, anunciando uma época em que a “pluralidade” e a “diversidade” triunfam definitivamente sobre o mundo homogêneo das sociedades de massa do capitalismo industrial. A idéia é a de que a cultura de massa não mais se baseia na padronização dos bens de consumo, mas se diversifica em vários segmentos do mercado, ”sempre mais exigentes, capazes de produzir bens específicos e diversificados a cada público, criando assim maior liberdade de escolha”. (SEVERIANO)
O mercado hoje é uma máquina tão dinâmica, veloz e sagaz, que o próprio nome “máquina” parece não o representar bem. A sua grande sacada é perceber e se adaptar a a fuga dos padrões, que têm se tornado uma constante na sociedade. A velocidade das mudanças demanda, obviamente, mudanças no padrão de consumo. E ficamos tão enfeitiçados por elas que sequer percebemos a velha máxima que diz: o caos gera o padrão. Em outros termos, se a fuga de A começa a se repetir, logo, existem dois modelos: A e fuga de A – por mais que o último use como discurso o não-modelo.
O paradoxo se apresenta, então, como uma virtual contradição: ”a promoção de uma individualidade que, para ser reconhecida, exige do sujeito a submissão a modelos identitários, previamente articulados pelos códigos do mercado”. (Idem)
Pois bem, trata-se de paradoxo, mas não de contradição.
É preciso distinguir discurso de prática. Um indivíduo se diz seguidor de Cristo, mas taca pedra em prostitutas. Portanto, não se deve entender esta pessoa como cristã, mas como alguém que se diz ser. E o objeto de análise passa a ser o “por quê” ela se diz ser algo que, evidentemente, não é. O mesmo se dá, num duplo movimento, quanto a a questão individualização. Movimento duplo pois os esforços não podem parar sobre o indivíduo que se acha em busca de uma marca só dele, mas ir além, chegar no mercado que, através dos seus meios, a media, trabalha por estimular a ideia de que é preciso ser único, ao mesmo tempo que cria “pontos de encontro sociais” para que indivíduos compartilhem falsas individualidades, e se legitimem, em grupo, enquanto “únicos”, “diferentes”, com “gostos próprios”.
Aí, então, que se chega a um ponto crítico: se a pessoa discursa sobre ter gosto próprio, mas carece que um grupo a legitime, há gosto próprio?
“(…) já não há campo para escolha; nem sequer se coloca mais o problema, e ninguém exige que os cânones da convenção sejam subjetivamente justificados; a existência do próprio indivíduo, que poderia fundamentar tal gosto, tornou-se tão problemática quanto, no pólo oposto, o direito a a liberdade de uma escolha, que o indivíduo simplesmente não consegue mais viver empiricamente”. (ADORNO)
Tanto para Santo Agostinho quanto para Descartes, vontade e liberdade são sinônimos. Em Sartre, o ser humano é condenado a ser livre, e o dilema existencial é estar-se, fatalmente, preso a a liberdade. Deste modo, você pode escolher entre a angústia de ter consciência do teu fatal livre-arbítrio, ou procurar não vê-lo, tamanha a responsabilidade e aflição.
Com Sartre, então, estamos diante de um mundo de possibilidades, que terá contorno a partir das nossas escolhas, possibilitadas pela indelével liberdade. Liberdade de escolher, pois. Assim, ao ouvir uma música no rádio, temos o poder de aumentar o som ou de desligá-lo, ou mesmo de trocar estações no dial. Está nas nossas mãos, nas pontas dos dedos. Então, se os sucessos são sucessos, deve-se a a escolha de um grande número de indivíduos que optaram por gostar deles, por fazer dos sucessos, sucessos. Confere?
Mas…
“Se perguntarmos a alguém se ‘gosta’ de uma música de sucesso lançada no mercado, não conseguiríamos furtar-nos a a suspeita de que o gostar e o não gostar já não correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar ou não gostar. Em vez do valor próprio da coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos;gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo”. (ADORNO)
Muito mal compreendido pelos que o julgam “elitista”, Adorno percebeu que a adesão ao mercado é acrítica, e que a indústria cultural ”cria a falsa identidade do universal e do particular”, do indivíduo e da sociedade, na qual nada é negado, senão a própria liberdade de não consumir.
“Ao invés de entreter, parece que tal música contribui ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade de comunicação. A música do entretenimento preenche ainda mais os vazios do silêncio que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências”. (ADORNO).
A vida moderna é preenchida de mudanças velozes e de aceleração, mas também de uma angústia que se apresenta a a reboque deste dinamismo. Vive-se numa era de planificação de gostos e costumes e da ilusão de mobilidade social. Os herdeiros das classes (?) proletárias e escravas têm seus sonhos adornados pelos mesmos desejos dos herdeiros da burguesia. E a mesma planificação e pseudo-mobilidade que, por um lado, permite a mim escrever e refletir sobre isto, nivela a cultura (em sentido lato) em torno de bens-de-consumo que falsamente entretêm, criando o vício-do-entretenimento, e contribui ativamente para que a linguagem e a cognição sejam esquartejadas. Ao passo que se tornam mais práticas, para acompanhar o ritmo da vida moderna e do mercado, tornam-se menores em complexidade. E se você atrofia a linguagem, atrofia a cognição. Atrofia o conhecimento e, assim, transforma em carbono o oxigênio necessário para a mobilidade que permite as escolhas.
Não se pode, definitivamente, cair no erro do determinismo ao criticar o funk, por exemplo, como uma arte menor. Aí sim haveria algo como “elitismo”, e que fique claro que isso não ocorre aqui. Não se pode querer que indivíduos balizados por trabalhos degradantes, indignas condições de vida, paisagens caóticas e condições de saneamento medievais produzam uma arte que fale sobre as belezas naturais do Rio de Janeiro, por exemplo. Belezas estas que são muito distantes, e que a “segurança pública” praticada pelo governo estadual só faz ficar cada vez mais apartadas. O funk é uma arte essencialmente vinculada à realidade dos moradores das áreas periféricas do Rio. Mas isto não é tudo. Ao passo que academia começa a lançar seus olhos sobre ele, como um europeu piedoso dos seiscentos via os ameríndios, como quem descobre uma tribo que desconhece a civilização, ele se dissemina por toda a sociedade.
Como afirmou Adorno, as queixas acerca da decadência do gosto musical é tão antiga quanto a própria música (salvo o devido exagero).
Assim, a questão que se põe não envolve juízo estético. Mas outra: como escreveu Hermano Vianna, “é preciso questionar as teorias que pensam a indústria cultural como uma instituição que busca transmitir um conjunto de valores pré-estabelecidos (os valores das ‘classes-dominantes’) através dos seus produtos”. E, de acordo com o que foi anteriormente apresentado, ele continua:
”longe de buscar uma homogenização de valores, hoje a tendência mais importante do funcionamento da indústria cultural é justamente uma tentativa de se adaptar a a heterogeneidade de seus diversos públicos, segmentando-se ao extremo para satisfazer os gostos diferentes”.
Como ficou já claro, me parece que o mercado, ou a indústria cultural, não “tenta se adaptar”, mas se adapta, com destreza e habilidade. Não há o que lhe fuja, e definitivamente o funk não lhe escapa. A ideia de que trata-se de um movimento genuinamente popular não vai de encontro a isto. Pelo contrário.
É preciso, portanto, rever de uma vez por todas a ideia de que o funk caminha na contramão do mercado, e que este se dá somente através dos programas dos Fautões, das grandes gravadoras e turnês mundiais. Por outro lado, não se pode cair na armadilha de ver a indústria cultural, ou o mercado como um todo, numa tendência a heterogeneizar, mas como notou Maria de Fátima Severiano, a estimular uma pseudo-heterogeneização. Ou seja, trata-se de uma teia de segmentos cujo combustível é não só a mais-valia, mas manutenção de controle, e, assim, de Poder.
- - - - - -
ADORNO, T. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição.
SEVERIANO, Maria de Fátima. Pseudo-Individualização e Homogenização na Cultura de Consumo.
SEVERIANO, Maria de Fátima. Pseudo-Individualização e Homogenização na Cultura de Consumo.
VIANNA, H. Funk e Cultura Popular Carioca.