A cidade me atravessa

A cidade passa batida, sem freio, e leva de mim algumas partes da memória. Alguns fragmentos de alguma coisa que tem cheiro. De alguma coisa que um dia deve ter sido, não sei bem. O suposto frio, gelo seco, a neblina opaca que evapora sem tempo dos suores filhos do calor humano entorpecem a pouca delicadeza que ainda lembro ter. Talvez. Braços se batem. Pernas se esfregam. Sapatos se atropelam. É o ritual do tempo, entrechocando à distância sua efêmera permanência. Esticando minha jugular como corda de sua depressiva sinfonia de um só instrumento. Um só tom. Em mezzo. Contante. Metrificado bater de relógios aos surdos. Labirinto pra que te quero. Labirinto: não me falte. Meus botões estão a rodar aos graus impossíveis, ou não, por não aguentarem mais ladainhas. Atrás do rabo. Atrás do rabo. Atrás do rabo. É da tontura que há equilíbrio. Vive-se numa cidade feliz. Eu sou feliz. Meus botões não dizem o mesmo. Eu digo o mesmo; sempre o mesmo. Não digo nada de novo, mas acabo dizendo tudo outra vez. Gaia. "Tu não te lançarias ao chão, rangeria os dentes, e amaldiçoaria o anjo?". Eu beijaria sua fronte, lamberia-a se fêmea fosse. Não posso. Sou autoproclamado e auto-enclausurado artista da febre embebedado a tapas pelas gentes que me preterem com o amor que lhes povoa as veias. A cidade não me aprisiona. A cidade me rasga. Eu não sou mais se um dia fui; não sou o que teria sido, nunca. A cidade passa. E fica. Passa; mas não vai. Retorna sem ir. "Quero isso ainda mais e inúmeras vezes?" - "E tudo na mesma ordem e sequência?". A cidade é a razão. Estenda-se. Renda-se. Despeça-se. Ou não.