Sobre a fé moderna

Quando se começa a estudar sobre a Modernidade, os manuais nos orientam a entendê-la como um momento da História Humana Ocidental em que a Razão se apresenta como mediadora das relações sociais e subjetivas. A Razão, portanto, aliada de primeira hora do Capitalismo, criara a possbilidade de planejar ações de médio e longo prazo e alcance, mecanismos mais complexos de organização da vida e estruturas socais mais móveis e burocratizadas. A Razão, conquista humana maior, teria aberto espaços para que pudéssemos controlar o mundo e a natureza, conhecer o suficiente do seu modus operandi a ponto que pudéssemos prever seus passos. Como na metáfora de Benjamin, a Razão teria “limpado o terreno dos arbustos do mito”.

Não foram poucos os entusiastas do progresso e da modernidade que contrapuseram Razão a a Fé. A a última, se remeteria aquilo que a subjetividade procurasse responder e que escapasse aos fatos. Pois sim, a Razão se atém aos fatos. Deus se justifica pela pequenez humana perante si mesma. Deus não é fato. A Fé não se dá nos fatos. A ciência moderna, embriagada de evolutionismo, olha para a Fé e, altiva, dá de ombros dizendo: este mundo é pequeno demais para nós duas!

As gentes têm tanta certeza que é preciso ter certeza, que a possibilidade de dúvida é um terror que deve ser, o quanto antes, eliminada. A dúvida, força-motriz do conhecimento, é esnobada e rebaixada ao mundo dos outsiders. Tanto os que engrossam as fileiras cietificistas quanto os crentes rejeitam a dúvida. O importante é ter certeza. O homem moderno é aquele que precisa poder explicar todo o funcionamento do mundo, e que este funcionamento seja lógico, dentro dos parâmetros estabelecidos pela ciência. O homem moderno é tão auto-suficiente em sua certeza, que não consegue, definitivamente, perceber que vive num mundo sustentado, não pela Razão, mas por ela… sim… ela, a Fé.
“O homem moderno julga-se muito inteligente e sabido por não crer mais no que está escrito nas estrelas, mas acredita prontamente em tudo o que disseminam os chamados meios de comunicação de massa”. (Luiz Bicca)
Segundo a wiki, Fé “é uma firme convicção de que algo seja verdade, pela absoluta confiança que pomos em algo ou alguém”. E ela continua, “a fé não carece de provas e de evidências”. Quando nos é apresentada alguma informação pelo Jornal Nacional, não questionamos suas fontes, seus propósitos, sequer sua veracidade. Confiamos no William Bonner. E mais, temos Fé que todo o sistema que possibilita tal notícia nos chegar, não permitiria que o Bonner nos faltasse com a Verdade. Definitivamente, não questionamos. Não duvidamos.

Giddens cita um exemplo do cotidiano moderno: sair de casa, pegar o carro e andar por uma estrada. Eu, por exemplo, ao fazer isso,exerço minha Fé. Enquanto historiador, nada entendo de mecânica automotiva, não compreendo a engenharia dos semáforos de trânsito e tenho uma idéia mínima de como se faz (quando se faz) manutenção de estradas. “Quando estaciono o carro no aeroporto e embarco no avião, ingresso em outros sistemas peritos, dos quais meu próprio conhecimento é, no melhor dos casos, rudimentar”. (Anthony GIDDENS)

Em Giddens, os sistemas peritos (expert sistems) são sistemas de competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos. Tanto o trânsito aéreo quanto o rodoviário funcionam segundo sistemas peritos quais confiamos, mas que não se tem grande conhecimento – não o suficente para confiar neles, como o fazemos – e o mesmo se dá, dentre praticamente tudo o que nos cerca e é cotidiano, com os meios de comunicação. Assim, cremos que há todo um aparato especializado que dá sustento a vida material e social. Cremos porque não vemos, não conhecemos, mas confiamos que ele existe.

Portanto, é a Fé que dá sustento ao mundo moderno. A atual crise mundial retrata bem isto, ou melhor, está a nos mostrar o quê ocorre quando a Fé é abalada. Há anos pautamos nossas economias e, assim, vida material, em um sistema econômico que materialmente inexiste. O que possibilitou a atual economia foi a Fé nela. O Mercado futuro, os juros e toda a fragilidade que é o mercado especulativo somente foi possível pelo motivo de termos acreditado nele. E, como dito antes, acreditar sem conhecer, sem prova material de que exista, é Fé.
“Conheço muito pouco os códigos de conhecimento usados pelo arquiteto e pelo construtor no projeto e construção da minha casa, mas não obstante tenho ‘fé’ no que eles fizeram. Minha ‘fé’ não é tanto neles, embora eu tenha que confiar em sua competência, como na autenticidade doconhecimento perito [expert knowledge] que eles aplicam”. (GIDDENS).
É importante, não obstante, não fazer a direta associação entre Fé e religiosidade. A Modernidade pôs na religião o slogan ”fé” por esta não se comprovarpelos meios que a própria modernidade definiu como legítimos - científicos. A Verdade Revelada do crente, antes de ser charlatanismo ou fuga das limitações humanas que encontram nela um porto seguro prático, é um tipo de conhecimento que a ciência moderna não compreende. É preciso, portanto, compreender que a Fé, embora faça referência ao supra-sensível, não se limita ao campo religioso. Muito pelo contrário.

Na modernidade, ciência passou a ocupar um espaço – que eu chamo de ”horizonte de segurança” - que durante muito tempo pertenceu a a religião (em sentido lato). A própria denominação “mitologia” é carregada de determinismo cultural. O que dá poder a nós de afirmar que Zeus não passa de um mito? Que poder temos nós para diminuir Anhangá ao estágio de conto fantástico? A resposta é simples: a ciência moderna nos dá esse poder. E o que dá sustento a ela? Nossa Fé.

A ciência moderna, com sua ambição de controlar a Naturezadesenfeitiçada, como sugeriu Bacon, se apresenta como horizonte de segurança, ou seja, no imaginário social, no lugar de Deus. Após anunciar a morte D’ele, Nietzche pergunta: ”Como haveremos de nos consolar? Que solenidades haveremos de inventar?” e, então, a Razão moderna apresentou as respostas: o culto a ela. E com Adorno continuo: se antes se sacrificava animais e pessoas para o deleite dos Deuses, hoje o fazemos para o bem da ciência.
“A técnica possui uma ligação de fundo ou um parentesco com a magia (…) É possível pensar que a atitude mágica diante da realidade foi uma condição importante para o surgimento e triunfo da técnica. Mas a tecnociência moderna não deixa de manifestar uma profunda ambiguidade em relação a natureza: [não seria] ela prolongamento, continuação da natureza por outros meios?” (GIDDENS).