Breve Diálogo ao Anoitecer

O cair da noite faz, aos poucos, escurecerem-se as paredes, as vilas, as ruas. Mas, como que num passe de mágica, faz-se luz das lamparinas elétricas. São as lâmpadas que iluminam as casas das pessoas que vivem respirando, caminhando, acendendo e apagando insistentemente as luzes dos quartos, das salas, dos quartos, das salas, das cozinhas, dos quartos, das salas.

Da cozinha pro quarto deslocaram-se dois velhos amigos silenciosos. Lá chegando, sentaram-se ambos ainda silenciosos. Olharam-se com afeto, com fome e mudos. A viúva, em suspiro de coragem, o olhou nos olhos e baforou:

- Nada mais sou, amigo, que uma alma viúva de prazeres a vagar pelo mundo, desprendida de destino. Deixo minha vida ser tragada pelos meus fantasmas, que me acompanham do café até o descanso.

Um gole demorado. A bebida desceu como fogo pela garganta. Ele levantou os olhos, abaixou os ombros e disse em tom grave:

- Queria eu ser poeta neste quarto e aconselhar-te a gargalhar com o eu copo. Poetas conhecem os demônios como íntimos, como que as loucuras não lhes coubessem no peito (...) Não julgo os anjos, tampouco os loucos. A liberdade que ambos têm me causa inveja... - reclinando-se na cadeira continuou, fitando as paredes - Os seus charutos me parecem saborosos. E, quanto aos anjos, têm prazer ao ver-te em leito.

- Nada sonho, amigo, em meu descanso – ela o interrompeu. Nenhum mísero a adornar qualquer desejo. O corpo cai. Solitário, em desprezo (...) E quanto aos conselhos. Obrigada. Muitos tenho.

- Me dá repúdio, minha cara, a nossa raça. As horas correm e conosco mal se importam. Somos pequenos. Vês? Somos a caça! Às vezes penso que a razão só nos serve pra desgraça.
Ele se levantou e parecia lembrar do tempo em que lecionava:

- De nossas vidas não lembramos nem metade. Mas, ainda assim, perseguimos o passado como carma. E há momentos em que achamos que é ele quem nos ameaça. Criamos passado, sobre passado, sobre mágoa.

Se percebendo un tanto ou quanto inconveniente, deu alguns passos a esmo. Procurou os fósforos nos bolsos. Acendeu um cigarro. E incentivado pelo olhar que julgara pouco usual da velha amiga, continuou em tom mais ameno, olhando pra janela lateral:

- E os bons momentos, doce anjo, só nos servem de lembrança como tortura se estamos assim. Longe. Sem mais nenhum começo a experimentar. Sem mais nenhuma novidade a nascer no horizonte. Nada...

- Nada.

- Nada, minha amiga, deveria ter começo ou mesmo fim.