Quimera Casual de uma Noite Chuvosa

Foi vestir a leve camisola branca pra que chegasse outra vez aquele velho e conhecido peso. Aquela ancestral inquietude. Aquela carga que escorre ligeira dos ombros pro peito e lá se instala refletindo alguma aguda consternação no estômago, nos braços, nos cotovelos. Ela vestiu a leve camisola branca, de seda, pôs as mãos mecanicamente por sobre a barriga e abaixou a cabeça. Do lado direito, o espelho. A última coisa que desejava ver. Mas também não conseguia mover-se para o outro lado. Como refúgio, seguiu em frente. Ainda com a cabeça abaixada, alguns passos. A gravidade mostrou sua força. Os pés confrontaram a estática da mente, contraditoriamente em tantas formas, números, cores e cheiros indecifráveis. Passos miúdos e mal calculados. E o ventre, então, contra a parede. Estranho verão. Fria muralha. Sentia como que se abraçasse a janela que a testa pressionava com o peso de toda uma vida. Mas os braços, ainda colados ao corpo. Os dedos, a esfregar involuntariamente o escorregadio tecido da leve camisola branca. E o corpo... O corpo, talvez frio. O corpo, talvez quente. O corpo, como o fim do verão, em tempestade.

A vontade de não estar ali só não competia com a idéia de mover-se. Assim é esse estranho verão. A leve camisola que roça os seios. Assim são os cabelos caídos por sobre os olhos, talvez abertos. Nenhuma viva alma a serpentear perdida pelo asfalto. Mas fantasmas... Há muitos. As delicadas coxas lutavam inutilmente entre si. O ventre medindo forças com a parede. O nariz beijando o frio vitral. E os olhos, embaçados pela chuva que lavava rua, quintal, portão, mas não dentro. Nas mãos, a febre incurável das noites insones. Antiga companheira de viagem.

Talvez escrever uma carta. Talvez escovar os cabelos. Talvez gritar. Talvez morrer. Talvez rasgar a leve camisola branca. Arranhar a pele. Talvez... Talvez testar a física e planar leve sob a chuva e sobre o chão. Sob, sobre e entre a inconstância do céu e do inferno desse estranho verão em que se vê tanta água a cair e tanta coisa sem nome reviver. Uma inspiração profunda e tensa. Demorada. E os pulmões se encheram de um ar quente. Soprou com perfume ardido de silêncio um vento visível que se espalhou ao encontrar a janela fechada. Ela espalmou as pequenas e sutis mãos no vidro. As arrastou deslizando até em cima. E com expectativa quase infantil ouviu, atenta, o ranger da madeira enquanto algumas gotas finas da chuva deliciavam-se a ser fazerem de prenda à sua boca. Com algum impróprio pudor a língua foi abrindo espaço por entre os lábios até que um sorriso de feitio maquiavélico se instaurou na aparência. Uma outra inspiração vagarosa e pingos de céu e vento se misturaram pelo seu rosto. Ela virou de costas pra janela, apoiou as mãos no peitoril, evidenciou os afortunados olhos amendoados e, com sorriso de canto de boca, destilou toda a sua casualidade em tom silencioso e fatal. Ela, seu pequeno corpo alvo e inflamado, a leve camisola branca de seda a esquentar ainda mais os seios e, a sua frente, ele.

Tão fácil e tão óbvio agora. Ele, que sempre estivera ali, plantado atrás do comprido espelho, é e sempre foi o ponto final de uma excursão incompleta. De uma aventura que ela sempre preferiu guardar enquanto aventura. Não há ocasião de trilha se o fim é tão perto. Ela preferiu não pensar. Calar quimeras. O que há é uma noite quente e chuvosa de um verão que... Talvez um cigarro. Mas ela não fuma, embora guarde alguns na gaveta. Uma bebida, sim. Mas a garganta parecia fechada, as pernas travadas, o peito em inconveniente palpitação acelerada, quase audível. O fim, tão próximo. E tão indesejável. É preciso embebedar a breve insanidade no mundo das fantasias possíveis. Mas não trazê-las pra tão perto. Nunca!

A constante sensação de estar sendo observada começou a desagradar. Um misto de libido e vergonha. E raiva. E alguma dor sem sobrenome. A janela, às costas. Na sua frente, o vazio do quarto. O mesmo quarto de sempre, vazio. No pescoço, o sopro breve e morno da úmida brisa que mais pareceu uma voz grave e rouca arrepiou os poros. Nua, completamente nua ficou a alma quando percebeu que da esquina um vulto do passado a espiava. 

A noite, sem horas, se arrastava. Passou arranhando e gritando. Quantos fantasmas serão precisos? Quantas canções, quantas cartas engavetadas, quantas flores mortas, quanto anos? Sob a chuva, o vulto se mostrava. Da janela, o olhar incógnito, os cabelos melindrosos e a leve camisola branca nada escondiam. E assim permaneceram. E assim permanecem. Cada qual com suas noites insones e verões estranhos. E assim se vêem, sempre com os olhos cerrados e distantes. E assim se tocam, através das brisas e das chuvas acidentais. E assim se ouvem, graças aos berros abertos e cansados da solidão noturna. E assim se amam, no mais puro e absoluto desamor.