Às vezes sou perguntado se ”gosto de ler”. Procuro nunca responder “sim” ou “não”, não pela obviedade ou pela [possível] esterilidade da questão, mas por, realmente, não saber a resposta. Absolutamente, não tenho em mim certeza se desta pergunta pode-se replicar de modo tão simples e objetivo quanto com “sim” ou “não”.
Embora passe a grande maioria do meu tempo no exercício da leitura, afirmar que ”sim, gosto de ler” me parece nada dizer sobre mim e sobre meus gostos. Citando um exemplo rápido, fui presenteado há algum tempo com um livro do Augusto Cury. A principio, fui pego por uma rejeição tamanha por ele. Tempos depois, trabalhando em mim alguma maleabilidade, algum sentimento até de curiosidade, quando me percebi livre de pré-conceitos, pus-me a ter com o livro. Resultado: não consegui passar da página 6! As letras me engasgavam a garganta, embolavam no estômago. E o mesmo se deu com vários outros muito vendidos, muito lidos e muito citados.
Para Harold Bloom, leitura é prazer. E eu, definitivamente, concordo com ele. O prazer é subjetivo. Meu prazer é meu. Teu prazer é teu. O prazer dele é dele. Bloom não tem dúvidas de que lemos para fortalecer o Ego, e de que o prazer da leitura é pessoal, não social:”o porquê da leitura deve ser a satisfação de interesses pessoais”. É difícil, embora não raro, encontrar alguém que partilhe contigo dos mesmos prazeres, sobretudo os da leitura. Quando isto acontece, ocorre algo como uma comunhão, quiçá, espiritual.
Nesta perspectiva, Bloom propõe que nos dispamos de qualquer propósito social da leitura. E sugere uma espécie de imperativo proposto por Bacon:
“Não leia com o intuito de contradizer ou refutar, nem de para acreditar ou concordar, tampouco para ter o quê conversar. Mas para refletir e avaliar”. (Francis Bacon).
Não só a a leitura, mas dedicar-se a qualquer atividade com o intuito único da satisfação e do prazer parece um sem-propósito neste mundo atravessado pelo utilitarismo. Somos tragados pela lógica e pelo ritmo frenético das horas, dos dias. Mas, ao mesmo passo que somos produtos do Mundo, somos também sua força propulsora. Se o mundo nos cobra pressa e afeta nossa subjetividade na busca por sentido de utilidade às coisas que fazemos, nós respondemos a esta demanda de modo afirmativo, corroborando e colaborando para que este ritmo, esta demanda se agrave e intensifique. Dizemos aos outros e a nós: não tenho tempo. E assim, tudo fica mais cômodo.
A prática da leitura aparece hoje, por um lado, embolada à ideologia da utilidade, e, por outro, como um artigo de luxo qual não é pra mim. Não se pode e nem se tem tempo a perder com atividades que possam produzir e estimular qualquer prazer pessoal. Exercemos atividades absolutamente efêmeras sob o pretexto de terem utilidade social, quando, na prática, são placebos auto-medicados. Ou, então, pomo-nos a ler para o Outro. Para criar sobre si uma fantasia, um adorno: um fetiche. Lê-se com o propósito de aparentar saber sobre determinado assunto, e o prazer este não é o da leitura, mas o da suposição de que o Outro acha que se sabe. Me repetindo, para-além de qualquer juízo de valor que se possa fazer sobre tal prática, posso afirmar que, certamente, assim, o prazer não é o da leitura.
Em recente palestra a professores do ensino fundamental de uma grande e famosa rede de colégios do Rio, propus a questão: Por que lemos?
Diante de uma platéia angustiantemente calada e compassiva, a única resposta que obtive foi de uma professora, nitidamente incomodada, que me disse: ”olha, sendo sincera, eu não gosto de ler. Leio pra me informar, pra saber o que está acontecendo. Mas eu não gosto de ler”.
Percebi pela reação silenciosa dos demais, que ela não era a única, e temi que sua opinião fosse a de todos os presentes. Sugeri, então, que ela ainda não havia encontrado na leitura aquilo que a desse prazer. E, para não criar mal-estar, dei prosseguimento a a apresentação, detalhando os passos que entendia serem os mais bem cabidos para estimular o hábito da leitura nos alunos.
Meu planejamento era refletir com os professores, a parir da experiência própria de cada um, sobre o propósito da leitura, até chegar ao meu Norte: o prazer. Como se deu o processo de leitura, em cada, um até que fosse um hábito. Quais foram os livros que mais deram prazer. Como foi o primeiro contato com a leitura enquanto uma prática, parte do quotidiano de cada um. Só que eu não contava com este novo dado: nenhum dos presentes se manifestou no sentido de mostrar que tenha na leitura um hábito, ou que haja qualquer associação entre ler e satisfação.
E mais: é no mínimo muito grave que os professores se coloquem, sem pudor e sem receio, na frente de um estranho, de demais colegas e de superiores como pessoas que leem por dever, sem qualquer relação de prazer com a leitura. Tratar-se-ia ali de um grupo de corajosos, que reconhecem suas limitações, ou chegamos a ponto tal que é indiferente para nós, sociedade, que o professor goste ou não de ler, que tenha ou não na leitura um hábito, um prazer? Receito ter muita certeza de que lidamos com a segunda hipótese.
Me parece, e é esta uma visão particular, ser mais grave o fato de o professor não nutrir qualquer intimidade com a leitura, do que o caso de um médico que tenha rejeição a a sangue, ou um mecânico que sinta nojo de graxa, como me sugeriu um amigo.
“Uma das funções da leitura é nos preparar para uma transformação, e a transformação final tem caráter universal”. (Harold Bloom).
Me parece muito duvidosa a afirmação que ouço (e leio) sempre de que “leio de tudo”, ou “gosto muito de ler”. Eu, particularmente, acho estranho que alguém realmente sinta prazer em ler tudo o que lhe vem a a mão. Gosto de poesia, mas muitos poetas e poemas não me causam qualquer satisfação. Sobre textos em prosa, sou mais rígido ainda. Gosto muito de filosofia, e me entretenho fácil com Ética e com Estética, mas deixo passar sem qualquer receio artigos e textos sobre ontologia – embora eu esteja começando a variar. E que fique claro que trata-se de gosto. Trata-se de prazer. E o meu prazer é meu.
Não obstante, o poder de reflexão e de avaliação que, para Bacon devem ser o fim da leitura, não se desassociam do prazer da leitura pela leitura, tampouco do fortalecer do Ego. Definitivamente, ler só engrandece e enriquece, independente do quê, do tema, do conteúdo. Uma sociedade de leitores é uma sociedade muito mais próxima do pensamento autônomo, e isso significa distanciar-se do consumir para se chegar a a escolha do quê se consome: quando a prática da leitura vira prazer, você começa a identificar o que lhe dá prazer, qual é o teu prazer – aí sim, subjetivo e autônomo, posto que é uma prática solitária -, e dá passos significativos para a consciência de que, para-além de se ser fruto do mundo, se é agente dele. Em outros termos, assumir, numa utopia que vale a pena, a postura de fazedor do mundo, ciente e comprometido com a responsabilidade que é sê-lo, e não somente estar nele.
E você, gosta de ler?