Estava com alguns minutos de sobra e resolvi me entreter num sebo, a caminho do metrô. Como quem não quer nada (e tenho sempre a sensação quando entro em uma livraria de que, realmente, nada quero além de ficar por lá, como um voyeur), fiz duas ou três perguntas ao livreiro, daquelas que eu sabia que ele diria “vou pesquisar” e depois me viria com o velho “não achamos nada sobre”, até que, quando já estava satisfeito por ter encontrado um (cheio de fungos e úmido) “Grandes Sonhos da Humanidade” datado de 1940, me deparei com três pilhas enormes de livros de capa-dura, três longas coleções assinadas pelo Wells. Pedi que me pegassem as empoeiradas pilhas, sentei no chão, e pus-me a olhá-las.
Tratava-se dos 10 volumes de “A Ciência da Vida”, edição brasileira dos anos 50, que Wells escrevera com Julian Huxley (não este Huxley qual me refiro no título), “História Universal” (em inglês, The Outline of History: being a plain history of life and mankind), também em 10 volumes, também dos anos 50, com tradução de ninguém menos que Anísio Teixeira e, por fim, uma coleção chamada “Obras – H. G. Wells”, também traduzida pelo A. Teixeira, que contém textos das duas anteriores mais os dois volumes de “A Construção do Mundo”.
Eu já tinha conhecimento destas obras, mas é diferente quando se tem exemplares à mão. Folheando-as, a megalomania de Wells me contagiou. Digo megalomania ciente do anacronismo desta expressão. Mas, mesmo reconhecendo que enciclopédias com propostas de darem conta de toda a “História Universal”, do homem, dos seres vivos eram empreendimentos nada raros até pouco tempo atrás, deparar-se com algo tão grandioso em ousadia é, no mínimo, espantoso – positivamente espantoso.
Falei comigo mesmo “Wells era um intelectual de primeira!”. Não sei exatamamente o que minha mente quis dizer com isso, ou seja, não seria capaz de definir o que é ser “de primeira”, mas ainda assim esta expressão parece caber muito bem a ele. E me repito, sem receio, Wells era um intelectual de primeira!
Conhecido pelas suas obras de ficção, como A Máquina do Tempo, A Ilha do Dr. Moreau, O Homem Invisível, Guerra dos Mundos, e tantas outras, Wells também ensaiou algumas teorias literárias, como The Scientific Romances, expressão que ele usava para se referir às suas obras de ficção, o que hoje chamamos de ficção científica.
Nos tempo atuais, em que a academia (e o pensamento científico: social, político, humano) não só incorporou a lógica utilitarista, imediatista, descartável e fordista do mundo social - quando deveria questioná-las, criticá-las -, mas também contribui em grande medida para que esta lógica se agrave e intensifique, pode parecer um nonsense que alguém possa reunir em sua bi(bli)ografia tamanha diversidade: da biologia evolutiva aa crítica das utopias modernas, passando por todo o processo de construção da civilização ocidental, além de romances científicos (para usar a sua expressão) arrebatadores. Wells é capaz de afirmações desconcertantes, como a que diz que a tese de que a modernidade afastara o homem da religiosidade é uma falácia, ou melhor, é uma afirmação ideológica, que mais tem a ver com a reafirmação do projeto iluminista que com as realidades sociais das gentes. Há tempos venho pensando nisso, sem que tivesse encontrado melhores argumentos. Wells, mais uma vez, falara por mim.
Em verdade, Wells falou por muita gente. Em documentário recente, a Discovery Channel o chama de “visionário”, de “profeta da ciência” que, “com suas previsões, ajudou a mudar o rumo da história”. Ora, Wells não fora um profeta, mas um intelectual de primeira!
Wells chama a atenção de público e crítica ainda hoje, em A Máquina do Tempo, por ser o primeiro romance a tratar da (ou se embasar na) teoria evolucionista. Ora, Wells fora aluno de Thomas Huxley (ainda não é o do título, este fora avô do Julien), auto-denominado “bulldog de Darwin”. Wells poderia ter escrito um tratado sobre biologia evolutiva, mas escreveu um romance. Do mesmo modo, em The World Set Free, fala sobre a energia atômica e o perigo das armas nucleares, antevendo uma Guerra mundial nuclear antes mesmo da Primeira Guerra: ou seja, mais de três décadas antes de Hiroshima e Nagasaki. Profeta? Não, um intelectual de primeira!
É preciso que, urgentemente, alguns conceitos sejam revistos. Como diz Todorov, a literatura não nasce no vazio. Ela não surge de uma mente genial completamente desconectada do mundo social. Ela não pertence a um universo restrito e recluso nela mesma. Ela fala sobre o mundo, mesmo quando imagina mundos outros. Ela fala sobre o homens, mesmo que para isso recorra a figuras inumanas. Do mesmo modo que é preciso denunciar e atuar contra a lógica especializante da academia, é preciso sacudir suas certezas, derrubar muros.
O posfácio da recente edição brasileira de Admirável Mundo Novo diz que “o leitor do século XXI pode reconhecer valores e comportamentos que deixaram de ser imagens de um mundo futurista para serem expressão de um modo de vida, agora real”.
Decerto, o Mundo Novo descrito por Aldous Huxley (este sim o do título!) em muito se assemelha aa nossa sociedade. Além da clonagem, da inseminação artificial e da manipulação do genoma humano, temas como a crescente racionalização do quotidiano, da liberdade sexual, a multiplicação dos mecanismos de controle e propaganda, a lógica utilitarista, as tecnologias que visam prorrogar o envelhecimento do corpo e a diminuição em importância da família para a constituição do indivíduo foram “antecipados” por Huxley no alvorecer dos anos 1930.
Outro aspecto interessante desta obra é que, mesmo escrito no entre-guerras, num momento em que os totalitarismos (russo e europeus) se constituíam enquanto oposição ao liberalismo, Huxley projeta um Mundo Novo em que o sistema político é um híbrido dos dois modelos: sob o discurso da liberdade se escondem mecanismos de controle que buscam ir além da repressão das vontades, mas na manipulação, no condicionamento da consciência mesma, afetando o indivíduo na sua subjetividade, de modo que a consciência-de-si abre espaço para a mecânica reprodução de máximas e padrões comportamentais fundamentalmente vinculados ao exercício da compra, à busca pela satisfação sexual e à necessidade de se reconhecer enquanto “normal”. Alguma semelhança com o atual estado de coisas?
Como Wells, Huxley não fora profeta de coisa alguma. Mas sim, um grande pensador. Poderia ter escrito tratados sobre Ciência Política, Sociologia, Antropologia, Psicologia, ou a logia que for, mas escreveu romances. Contudo, muito antes de escritores de ficção, Huxley e Wells foram pensadores do mundo.